INSENSIBILIDADE
Ao longe, na barra, ouvem-se os motores das traineiras. A cada minuto (ou menos) há uma descarga para afugentar os pássaros de uma qualquer cultura na serra. Passa de vez em quando um avião em aproximação ao aeroporto. O vento ressoou nos salgueiros durante toda a noite. Acalmou pela madrugada, altura em que as pegas, as rolas e demais criaturas aladas despertaram para as suas atividades acompanhadas por um chilrear, piar, arrulhar e gargalhar absurdos. Não há um segundo de silêncio. Já a seguir os veículos de recolha do lixo. E depois outros transeuntes caminhando.
Claro que poderia dormir. É o que faz a maioria das pessoas. É preciso sossegar a atenção. Cada um dos pios não precisa de ser escutado; os motores diesel têm pouca expressividade, embora alguma intenção; até as palavras podem ser reduzidas a um zumbido industrial. Mas por vezes encontramo-nos num doloroso estado de hipersensibilidade. Terão talvez inveja de tal benesse divina. Julgarão tal estado prodigioso, capaz de proezas sobre-humanas.
Tal não é o caso.
Distinguimos rostos humanos por meia dúzia de traços, que nem sequer somos capazes de nomear.
Não pela identificação escrupulosa de folículos, bexigas e rugas, mas sobretudo pelo que deixamos de ver (e ouvir). A realidade é opressiva, precisamos de ideias preconcebidas, classificações. Qualquer ideia é uma simplificação. A nossa inteligência é sobretudo uma ordenação errónea, mas necessária, da realidade.
É uma medida da nossa ignorância do pormenor. Tal estado de hipersensibilidade é apenas opressor e insone.
O silêncio estelar de uma noite limpa e fria. A miopia dos seus brilhos açucarados por entre as árvores. Meu deus, dêem-me isso ou a insensibilidade absoluta.
Comentários
Enviar um comentário