ABEL

Abel acordou de um sono profundo. Levantou-se com todo o vagar e cambaleou até à casa de banho. De seguida, ainda aturdido pela luz, naquela manhã muito forte, deambulou até à cozinha, de olhos semicerrados, onde tomou um café com leite e duas torradas – acordara com fome. Voltou ao quarto, ainda com as persianas corridas e em total obscuridade. Sentiu até um arrepio enquanto procurava a roupa, deixada de véspera em cima de uma cadeira – Abel era um homem previdente.

Era talvez sábado, mas Abel saía de casa sempre cedo, como se fosse trabalhar. Contudo, em vez de tomar o autocarro que o levava até ao centro da cidade, rumava ao quiosque onde comprava o jornal e bebia o segundo café – o definitivo. E em vez da sua farda castanha, vestia umas calças de ganga, uma camisa talvez às riscas azuis, aconchegada por uma camisola de algodão, e rematada por uns sapatos fora de moda e que ainda por cima lhe apertavam os pés, exigindo sempre a ajuda da calçadeira. Em frente à porta do prédio penteava uma última vez o cabelo, guardando de seguida o pequeno pente no bolso das calças – outro utensílio em desuso corrente. Abel era um homem antiquado, mas simples: tanto quanto pode ser um homem de hábitos solitários. A idade e a vida de solteiro – nem sequer era divorciado, vejam bem – acaba por torcer um pouco os hábitos de um homem; ou melhor, dá-lhe a oportunidade de, confortavelmente, moldar as suas práticas sem constrangimentos. Mas Abel não era, de todo, um excêntrico; era por demais normal. Esforçava-se aliás por isso, para que todos o considerassem uma pessoa normal. Preferia mil vezes que o tomassem por estúpido do que por maluco.

Porém, aquela não seria uma manhã normal; a estranha luz que irradiava de um ponto indefinido talvez o prenunciasse. Tudo começou quando se cruzou com a D. Ermelinda. Disse-lhe bom dia, mas a pobre senhora replicou algo de ininteligível. Nem lhe deu hipótese de acrescentar dois dedos de conversa, como acontecia habitualmente aos sábados – talvez fosse sábado –, deitou-lhe um olhar estranho e prosseguiu de sobrancelha levantada e modos macambúzios. Que se passaria com a D. Ermelinda? Com certeza alguma arrelia: os filhos, os netos, as noras, já se sabe, e a idade da provecta senhora também já não era a mesma.

Os pés de Abel quase rebentavam dentro dos sapatos. Teriam inchado durante a noite? Foi doloroso o caminho até o quiosque. Pediu um café. Ao que a senhora Esmeralda replicou uma algraviada a modos que inquisitiva. Um café, repetiu Abel. De cenho carregado a D. Esmeralda olhou para a Cimbali – um verdadeiro clássico luzidio da cafetaria italiana – e depois para o Luís, o filho da Catarina, que ali estagiava naquele verão para ver se ganhava mais gosto pelas atividades letivas. Trocaram palavras definitivamente ininteligíveis. Abel coçou a cabeça, engoliu em seco e até deu um pequeno passo à retaguarda. O rapaz aproximou-se dele de pano ao ombro e agarrou-o pelo braço, parecendo inquirir acerca do seu bom estado – o seu linguajar era, contudo, perfeitamente obtuso. Abel, gaguejou, ficou muito branco, da cor do pequeno muro caiado que ladeava o quiosque, descendo depois colina abaixo. E era para baixo que Abel se sentia atraído. Uma qualquer força eletromagnética dobrava-lhe as pernas e até a espinha, contorcendo-o em modos de parafuso; parecia prestes a ser atarraxado por entre as pedras da calçada. Ou isso ou a largar a correr colina abaixo, só tomando fôlego na beira do rio. 

Pois bem: não compreendia ninguém, nem era compreendido. Todos pareciam falar uma língua estranha, sem qualquer semelhança com a sua. Compreendiam-se mutuamente pelo que o problema deveria estar em si, Abel Murta Gomes. Talvez tivesse dormido demasiado. 

Recompôs-se. Olhou em volta e disfarçou o seu embaraço, levantando o braço direito, de mão aberta: estava tudo bem. Fez tudo isto sem pronunciar qualquer palavra. Lembrem-se que Abel tinha sobretudo medo de que o tomassem por excêntrico. Talvez estivesse doente: uma afasia; mas para ele era difícil reconhecer qualquer tipo de mau funcionamento intrínseco; tal seria uma anormalidade difícil de suportar, pelo que afastou rapidamente essa ideia. Como gostaria que chegasse mais alguém!

Nesse momento viu o Victor bamboleando-se rechonchudamente rua abaixo, cofiando o bigode, com as faces inflamadas. Chegado junto de Abel, deu-lhe uma valente palmada nas costas que até levantou pó – Victor tinha alguma dificuldade em medir a sua força – e disse-lhe:

– Bore da ffrind annwyl! Bydded y duwiau da gyda chi.

Ao que Abel, não se atrapalhando desta vez, replicou com toda a convicção:

– Nid yw duwiau da byth yn cefnu arnaf.

Não fazia, é claro, qualquer ideia do que acabara de dizer, pelo que aguardou com alguma apreensão a reação dos outros. Porque não lhes haveria de falar nos mesmos modos!? Tudo aquilo lhe parecia uma monumental farsa, mas não daria parte de fraco! Os outros que fizessem também um esforço por o compreender. E poderia dar-se mesmo o caso de ter dito alguma coisa compreensível – corremos sempre esse risco.

Victor arregalou os olhos, sorriu para a Esmeralda e para o gaiato, e gritou:

– Brecwast! – soltando ao mesmo tempo uma sonora gargalhada.

Com o tempo, Abel convenceu-se de que também conseguia falar aquela língua. É tudo uma questão de hábito. E um homem não se pode deixar surpreender por uma qualquer manhã inopinada. Comprou também uns sapatos novos, um pouco menos apertados, ainda que justos; e uns óculos escuros de aro metálico para proteção ocular. Todas as noites se esforçava por dormir um pouco mais profundamente, até que um dia se esqueceu disso.

Comentários

Mensagens populares