O GALÃO

Galão (café) – Wikipédia, a enciclopédia livre

Ainda hoje não sei bem porque razão ia tão amiúde àquele café. O dono e único empregado era extremamente antipático. Era incapaz de um sorriso. Não tinha qualquer pejo em mostrar o seu desagrado perante a mínima hesitação ou reclamação de um cliente. Mas, o meu dia não era o mesmo sem a sua cara carrancuda e as suas destemidas invetivas.

– Bom dia! – cumprimentava eu logo pela manhã. Invariavelmente, não me respondia. Quase sempre desocupado, encostado ao balcão, de olhos mortiços e esfíngicas papadas, camisa de mangas arregaçadas e dois botões desapertados abaixo do colarinho, franzia os lábios e o nariz, fazendo o bigode dançar. 

– Bom dia, Sr. Martins! – insistia.

– Só se for para si. Diga lá o que quer? – a sua expressão continuava completamente impassível. Nem um sorriso irónico ou um esgar de vergonha.

– Assim é que eu gosto de o ver. Sempre bem disposto!

Remoía então alguns impropérios. 

Eu irritava-o particularmente. Em especial quando tentava desmontar o seu mau humor, tornando-o evidente, e portanto ridículo. O que não era fácil, pois não era coisa que fizesse de forma irrefletida ou por incapacidade em dar um passo atrás. Era carrancudo por convicção.

A Dona Margarida, uma velhota adorável, e assídua cliente do estabelecimento, arriscava frequentemente:

– Este galão está frio, Sr. Martins.

– Está frio porque não o bebeu – respondia o próprio.

A velhota parecia, por momentos, não saber se teria que insistir, ou se a sua sugestão seria suficiente para um aquecimento voluntário da bebida. Depois de uma pequena pausa, pedia então explicitamente:

– Pode aquecer um bocadinho, Sr. Martins? Só ligeiramente.

– Para quê? Não adianta de nada. Depois fica aí a olhar para o vazio e não o bebe – e fazia uma pose afetada, imitando a respeitável senhora.

– Deixe estar então – dizia a velhota visivelmente ofendida com a mímica.

– Não seja por causa disso, Dona Margarida – a dança era a sempre a mesma e os dois já a conheciam. 

Levava a bebida com maus modos e cara séria, resmungando sempre. Aquecia-a e retornava à mesa com um passo despropositadamente apressado, pois o estabelecimento estava praticamente vazio. De seguida, invertia a marcha sem abrandar e postava-se impacientemente atrás do balcão, de pálpebras a meia haste, ventre protuberante e semblante imperturbável. Os seus olhos baços esperavam o próximo passo da dança. 

A Dona Margarida mexia lentamente o galão com a longa colher que o acompanhava, levantava as sobrancelhas com um esgar de ceticismo, levava o copo timidamente aos lábios e pousava-o de imediato:

– Demasiado quente – dizia com toda a calma.

O Sr. Martins ficava possesso. Agitava a barriga para trás e para frente, sem ir a lado nenhum ou proferir qualquer palavra, mas estava furioso.

– Demasiado quente – repetia a Dona Margarida. – Era para aquecer só ligeiramente.

O Sr. Martins nem sequer respondia. 

A Dona Margarida, contudo, gostava de verbalizar o seu desagrado:

– Já estou a atrasada – e comprimia os lábios descorados, contendo por momentos as palavras. – Não posso ficar à espera que arrefeça. Sr. Martins? Sr. Martins? Está a ouvir-me? Está demasiado quente. Pedi para aquecer ligeiramente. Mas está muito quente. O Sr. Martins sabe que já estou atrasada…

Já assistira a homicídios menos inopinados – em romances, bem entendido; como o daquele barbeiro de Camus, que sob a influência doentia do estio argelino, corta a garganta ao cliente sem qualquer justificação; este sai do estabelecimento incrédulo com o que lhe acontecera, esvaindo-se em sangue. Mas o Sr. Martins era, no fundo, um pequeno cachorrinho, tão inofensivo, como mal-humorado.

A velhota movimentava-se então na sua cadeira, dando a entender que se ia embora, deixando o infame galão praticamente por encetar. E isso, meus senhores, era capaz de levar o senhor Martins à beira da loucura. Depois de tanto trabalho, feito com tamanha má vontade, não o ia beber? Seria toda a sua má vontade em vão?

– Não, não, minha senhora. Não pense que se vai embora. Faço-a pagar o galão em dobro, pelo trabalho de o voltar a aquecer. Pode crer que o faço!

– Não seja mal educado! A sua mãe não lhe ensinou maneiras? Um menino tão crescido, quase um homem – e levantava as sobrancelhas, cheias de ironia, enquanto os olhos míopes se perdiam nos entrefolhos da sua maleta amarela. – Olhe que conheci muito bem a sua mãe, uma verdadeira senhora. É quase inacreditável que seja filho dela. 

– A minha santa mãe não é para aqui chamada. Sente-se e beba o seu galão. Vaso velho...

– Ah! Que atrevimento! Não percebo esse seu tom. Aqueceu-o demasiado. Nem sequer o devia pagar. Estou atrasada por causa de si.

– Por causa de mim!? Tenha paciência minha senhora. Nem sequer tem onde ir.

A barriga do Sr. Martins oscilava rotundamente em várias direções. A perspetiva do galão não ser deglutido transtornava-o. 

– As voltas que a sua mãe não dará no túmulo – insistia a Dona Margarida, voltando a sentar-se, mas sem sequer olhar para o galão. 

Estavam nisto durante vários minutos. Trocando olhares fulminantes e educados impropérios, já gastos, polidos pela frequente utilização. Por fim, a Dona Margarida levava timidamente o seu galão aos lábios e dizia:

– Está novamente frio, Sr. Martins.


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