A ÚLTIMA MOEDA


Percorro os bolsos em busca da última moeda. De nada serve a minha incompetente erudição – ninguém a quer ouvir. Passam duas crianças de mão dada, brincando a caminho da escola. Sinto-me em inestimável companhia, mas a sua felicidade é inacessível. Como um vaso quebrado, um balde vazio, uma cereja descarnada, abandonada pelos pássaros, sinto-me em falta. Em falta para comigo. Em falta para contigo (quem quer que sejas). Enrolo-me na ternura dessa falta. Compadeço-me. Talvez a procure. Como quem vasculha os bolsos à procura de algo. Uma última moeda, uma última cerveja. Sento-me como um rei numa esplanada cara. O empregado olha-me de lado. Bebo uma cerveja fresquíssima e faço um escândalo quando me apresentam a conta. Atiro com a moeda para cima da mesa e deixam-me ir embora para evitar mais problemas.

Vou até ao jardim e sento-me num banco. O sol está demasiado quente. Ando mais dois passos e sento-me do outro lado do caminho, à sombra de uma árvore. Estes movimentos são o suficiente para me deixar ofegante. A cerveja no estômago vazio deixou-me tonto. Ou talvez seja apenas a fome. Passa um homem de fato, que atira o resto da cigarrilha para o chão, mesmo à minha frente. Quero acreditar que era para mim; nem a pisou. Levanto-me e apanho-a discretamente, ainda acesa. Fumo-a. Sinto-me ainda mais intoxicado.

São 9 horas. Vou até à biblioteca pública. Percorro as estantes à procura de alguma coisa para ler; mas não consigo concentrar-me, nem os títulos das lombadas consigo discernir. A bibliotecária chama-me ao balcão e oferece-me o seu lanche da manhã. Uma sandes de fiambre. Gostava de recusar educadamente, mas não consegui. Como-a e um minuto depois sinto-me ressuscitar. A bibliotecária talvez goste de mim. É solteira e quero querer que seria capaz de me acolher em sua casa, como sua erudita companhia. Infelizmente, não suporto o afeto de ninguém. Prefiro cultivar a minha falta. A minha infelicidade. Abro um volume dos irmãos Karamazov; imediatamente encontro uma voz familiar, uma alma tenebrosa; um parricídio exemplar. 

Meto conversa com a bibliotecária:

– Sabe que deixei a minha mulher? Sim. E sabe porquê? Para cultivar a minha falta. Procurava algo que não existe. Uma falta. Algo perfeito. Não podia ser simplesmente feliz. Não. Isso estava-me vedado. A seguir foi o trabalho. Perdi todo o interesse. Já nada me importava. Fui despedido. Perdi tudo. E agora vivo ali no jardim. 

– Gastei hoje a minha última moeda – continuei. – Estava a poupá-la. Mesmo com fome recusava-me a gastá-la. Era o meu último conforto.

A bibliotecária olhava-me por cima dos óculos sem dizer nada.

– Não a maço mais, querida senhora. Pensava que gostava de mim. Mas vejo que se trata de mera caridade.

Como habitualmente adormeci num dos sofás com o livro nas mãos. Dormi muito. Acordo por volta da hora de almoço, como quem desperta de um pesadelo. Lembro-me então da decisão que tomei hoje de manhã, depois de gastar a minha última moeda. Iria até à estação de comboios e deixar-me-ia cair à frente do primeiro comboio. Tudo estava tão irremediavelmente errado e tudo me parecia agora tão inevitável, que não havia outra solução. A morte seria um bálsamo. Tudo seria rápido, bastava um pouco de coragem. Uma centelha de coragem seria o suficiente, menos do que aquela necessária a continuar a viver. Era perfeitamente racional.

Subi à plataforma da estação de comboios e aguardei. Os outros passageiros olhavam para mim com medo. Teriam medo que os assaltasse? Ou talvez me censurassem já pelo atraso que previsivelmente causaria nos caminhos de ferro. Nenhum deles chegaria a tempo ao seu destino. Mas isso era uma tolice. Ninguém o poderia adivinhar. 

Consultei o painel eletrónico. Mais dois minutos. Talvez menos.

Agitei-me, antecipando o medo. Não teria medo, resolvi. Seria corajoso.

Comecei a ouvir o rumor do comboio sobre os carris. Engoli em seco. Poucos segundos depois, este tornou-se visível, aproximando-se da plataforma. Cheguei-me à frente. Não teria medo.

No último momento, levei a mão ao bolso, num gesto reflexo, e encontrei uma última moeda. A bibliotecária – pensei; e não arredei pé.

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