A queda
Uma senhora de meia-idade ofereceu-me um panfleto. Esfreguei os olhos. Como tantos outros: Jesus Cristo é o teu salvador; vida eterna para os justos; os ímpios arderão no inferno. Senti-me aconchegado. Vi a morada e o horário das cerimónias e pensei em assistir. De qualquer forma não tinha nada que fazer: sexta-feira, 19 horas.
Começou a chover. Naquele ano choveu muito. Coloquei o panfleto no bolso e corri para a estação de metro. Esqueci o assunto até que na sexta-feira, enquanto estava a beber uma cerveja no bar da estação, o papel voltou a aparecer-me nas mãos. Pareceu-me então, tal como anteriormente, um programa válido. Com certeza que seria divertido assistir a uma cerimónia. É uma grande vantagem poder assistir ao desenrolar da vida sem estar emocionalmente envolvido – dá-nos a convicção de que todos os outros são tolos e nós, pelo contrário, geniais – o que não deixa de ser verdade nessas circunstâncias. Paguei a cerveja e pisquei o olho à senhora que estava ao fundo do balcão. Já me conhecia de outras sextas-feiras, pelo que desviou o olhar com desprezo. Sorri – dava-me prazer jogar com as inseguranças das outras pessoas; não sei dizer porquê.
A igreja era um pavilhão industrial recuperado. A entrada era encimada por uma grande cruz que se erguia para além do telhado e que era torneada por una fiada de lâmpadas, ora foscas, ora extremamente luminosas, e que me causou uma forte impressão.
Faltavam cinco minutos para o início da cerimónia – as pessoas acorriam ali, vindas das mais variadas direções, como se como um zumbido subsónico as convocasse. As suas faces tinham todas elas, reparava agora, uma expressão idêntica e vazia.
O interior da igreja era muito mais esplendoroso do que poderia imaginar. Grande e luminoso. O ar reverberava ao som de um órgão. Exatamente à hora anunciada deram início à cerimónia, o que, por alguma razão, me pareceu inesperado. À entrada e em meia dúzia de pontos estratégicos estavam seguranças, impecavelmente vestidos com fatos escuros, gravata e camisa branca. Os seus olhos eram límpidos. Todos repararam em mim. De alguma forma distinguia-me naquela pequena multidão. Eu próprio me sentia diferente do habitual. Talvez fossem as roupas – pareciam-me demasiado casuais, enquanto as das restantes pessoas, tinham um tom de cerimónia.
Entraram os padres – eram vários – e o seu olhar, tal como o dos seguranças, era límpido e inteligente. Vestiam mantos negros, até aos pés, e uns chapéus engraçados que os faziam parecer muito altos. Cada um deles trazia uma pequena taça nas mãos e parecia deslizar sob a multidão. Pensei uma vez mais no meu anorak verde – que desadequado – mas lá fora estava de fato frio e ameaçava novamente chover. Seria um dia especial? Alguma cerimónia especial? Ou as pessoas simplesmente vestem-se bem para vir à igreja? Lembrei-me novamente do panfleto e voltei a retirá-lo do bolso – começava a ficar amarrotado. Nesse momento a música parou. E um murmúrio crescente, vindo de todas aquelas gargantas crentes e adestradas, rolou como um trovão até que se sumiu num suspiro sincronizado.
– Irmãos! Estamos hoje aqui mais uma vez reunidos para celebrar a nossa união com o Senhor. Louvado seja Deus nas alturas e Pai Tomé cá na Terra – disse um dos padres através da potente aparelhagem de som.
Pai Tomé? Será que ouvi bem? Pai Tomé? Com um sorriso trocista nos lábios, balancei o meu cotovelo de encontro ao meu vizinho do lado, procurando um centímetro que fosse da sua cumplicidade – mas os seus olhos faiscaram e nenhum dos músculos da sua cara se moveu. Engoli em seco e virei-me novamente para a frente. Não te enerves. Está tudo bem.
Entrou um outro padre muito gordo, mestiço e com uma barba rala. Trajava de forma diferente. As suas vestes eram mais vistosas. Talvez fosse o Pai Tomé.
– Louvada seja a palavra de Pai Tomé! – ecoou a multidão.
– Irmãos! Quero partilhar convosco algumas palavras – disse. – Temos hoje entre nós alguém que precisa da nossa ajuda! Alguém que nos visita hoje pela primeira vez e que, meus irmãos, e minhas irmãs – sorriu –, tem levado uma vida absolutamente dissoluta! – um burburinho da multidão acompanhou estas últimas palavras.
Acho que me vou pirar daqui rapidamente – pensei. Olhei em volta e os meus olhos cruzaram-se com os de uma jovem rapariga de vestido negro que me fazia sinais.
– Esse jovem, porque é de um jovem que vos falo, não acredita em Deus todo poderoso; não acredita em nada, meus irmãos. Como é possível viver uma vida de felicidade, não acreditando em nada? Esse jovem precisa da nossa ajuda.
Era gira a rapariga. Se lhe sacasse o número de telefone não seria uma noite perdida. Desloquei-me na sua direção. Reparei então que me fazia sinais para parar. Lentamente, e apenas quando lhe pareceu seguro, veio ao meu encontro.
– Cuidado! Corre perigo de vida – sussurrou-me.
– É o que acontece a quem está vivo – gracejei.
– Tem que desaparecer imediatamente daqui. Rasteje por entre as cadeiras até às últimas filas, que depois eu crio uma distração.
– Está a falar a sério? Posso ficar com o seu número de telefone?... Só para o caso de precisar de alguma coisa, sabe.
– Estou a falar muito a sério. Fuja.
O Pai Tomé retomou o seu discurso:
– Ele está aqui entre nós. E vós sabeis quem ele é.
Levantei a cabeça brevemente. Dois dos padres começaram então a movimentar-se entre os fiéis, vindo na minha direção. Bolas, pareciam deslizar. Como é que eles faziam aquilo? As suas cabeças nem sequer oscilavam. Que importa. Tomei por bom o conselho da rapariga. Não me deu o número de telefone, mas sempre podia esperar por ela à saída.
– Não resistas pequeno irmão. Queremos ajudar-te. Mostra-te.
Comecei a rastejar entre as cadeiras. A princípio sem grandes dificuldades, mas depois começaram a pontapear-me e a pisar-me. Levantei-me com um olhar de censura.
– Aí está ele. Vem até aqui. Agarrem-no! – e apontou diretamente para mim.
– Oh, bolas! Que vem a ser isto!
Estava prestes a perder o controle sobre as minhas funções urinárias. Mas nesse momento a minha jovem amiga começou a gemer no outro corredor. Parecia estar a entrar em transe. Todos os olhares se viraram então na sua direção. Devo dizer que era absolutamente excitante ouvi-la.
Vários homens acorreram e elevaram-na no ar, por cima das suas cabeças, enquanto ela prosseguia com os gemidos. Os sacerdotes seguiram-nos. Pousaram-na em cima de um altar. Tinha mesmo que lhe pedir o número de telefone.
Devia ter aproveitado para fugir – era esta, com certeza, a manobra de diversão –, mas em vez disso fiquei perfeitamente siderado, as botas coladas ao chão e os braços caídos junto ao corpo. Dois dos seguranças agarram-me e eu acompanhei-os até ao altar sem oferecer a mínima resistência. Fizeram com que me ajoelhasse perante o grande padre que me benzeu a testa, os olhos e ainda a boca. Foi precisamente nesse momento que perdi os sentidos.
Acordei na paragem de autocarro, já de madrugada, deitado em cima do banco. Estava muito frio e chovia novamente.
De repente chegou um autocarro e abriu a porta. Desceu um homem.
Levantei-me a custo, pois o meu corpo estava bastante dorido. Ou talvez nem fosse isso, sentia-me simplesmente mal. Reconheci-o. Era o homem que estava ao meu lado na cerimónia. O seu olhar era agora perfeitamente límpido e vívido.
– O que se passou?
– Não se lembra?
– Não.
– Ainda bem.
– Está a brincar?
– Não.
Lembrei-me da rapariga.
– O que é que fizeram à rapariga?
– A rapariga? Ah, sim. A rapariga…
– Fique desde já sabendo que vou apresentar queixa.
– Onde? Contra quem? Você é deveras divertido. Não faz a mínima ideia do que diz. Ah, foi realmente impressionante, devo dizê-lo. Não é todos dias que participamos num espetáculo daqueles. Duvido que haja nova cerimónia em breve. Consegue ver a diferença nos meus olhos?
– Sim, de fato.
– Obrigado.
– Pelo quê?
– Pelo seu corpo, claro. Refrescou-nos a todos. É de fato um pequeno preço por tão grande benefício, percebe? E agora poderá fazer como nós, percebe?
– Não.
Um camião passou a apitar, com a buzina a fundo, encandeando-nos com os faróis. No momento seguinte o homem havia desaparecido. Estava novamente sozinho.
Do outro lado da rua avistei a rapariga do vestido negro, cambaleado. Dirigi-me a ela.
– Não me disse o seu nome.
– Não tenho nome.
– O que aconteceu?
– É melhor não saber.
– Parece ser a opinião geral.
– Vai perceber por si próprio. As coisas vão começar a parecer-lhe diferentes. Eu avisei-o. Devia ter fugido.
– Eu tentei. Porque me tentou ajudar?
Caminhávamos ao longo da avenida deserta. Não parecia interessada em responder-me.
– Bom, pelo menos estamos vivos?
– Não esteja tão certo disso.
– Como assim!?
– Não se exalte. A culpa não foi minha. Aliás a culpa foi única e exclusivamente sua. Espero que tenha apreciado o seu programa de sexta-feira à noite.
– Já não quero o seu número de telefone.
– Pena.
– Está bem, talvez seja precipitação minha. Diga que eu decoro. Tenho excelente memória para números de telefone.
– Não me faça rir. Estou demasiado cansada. Seria o primeiro fantasma com boa memória.
– Fantasma?
– Sim. Abandonou o seu corpo há pouco tempo. Por isso é que não consegue ainda notar a diferença. Mas gradualmente irá perceber o quão frágil é uma alma sem corpo (um fantasma, quer eu dizer). Sem corpo, sem a sua memória, que gradualmente se vai desvanecendo, a alma é essencialmente vazia. É isso que eles fazem nas cerimónias. Atraem um corpo para que todos se possam refrescar. Cada um deles toma o corpo por breves momentos, em sucessão, para que se reavivem as almas. Claro que é quase sempre demais para o corpo em questão – acontece muitas vezes um descolamento da alma. Como no seu caso…
– Espere lá. Estou a aceitar isto com toda a calma do mundo. Está a dizer-me que há vida para além da morte? Está a dizer-me a nossa alma, o nosso espírito, é eterno?
– Não, não é. Se estiver durante muito tempo sem tomar outro corpo, a alma desaparece. Apaga-se simplesmente.
– Não quero viver para sempre. Não. Isso seria horrível. Mas posso tomar o seu corpo agora?
– Tem tanta piada... Também sou um fantasma. E toda a memória sensorial que tinha acumulada, ofereci-a naquela pequena manobra de diversão.
– Porque é que me ajudou?
– Ora, porque é uma barbárie!
– E como é que mantém os seus olhos límpidos. Não me diga que não participa na barbárie. Como é que se alimenta?
– Há outras formas. O Pai Tomé conhece-as; mas é mais conveniente para ele que tudo se mantenha conforme está.
– Que outras formas?
– É difícil de explicar…. Há certos momentos em que as pessoas se ausentam do seu corpo. Nesses momentos é possível refrescarmo-nos sem prejudicar ninguém.
– Que momentos?
– Por vezes quando dormem – mas não sempre. Ou então quando a sobrecarga sensorial é tão grande que dois espíritos podem coabitar no mesmo corpo por momentos… por exemplo enquanto fazem amor ou… dão uma martelada num dedo.
– A sério?
– Sim. É deveras fascinante.
– Ensina-me?
– Basta estar atento. Não sou professora de ninguém.
– Mas… espera lá! Se eram todos fantasmas como é que os consegui ver e sentir? Deram-me uns bons pontapés!
Um dos padres, um homem muito alto, saiu de um beco e colocou-se à nossa frente.
– Já começa com más companhias, devo dizer-lhe – a sua voz era profunda e cavernosa.
– Vai para a puta que te pariu! – respondeu ela.
– Também não vale a pena ofender assim dessa maneira a mãe do senhor padre – disse eu.
– Eu posso ajudá-lo – disse o padre.
– Ótimo! Já agora, uma questão que o senhor padre talvez me possa esclarecer. Dada a minha nova situação, tenho que continuar a ir trabalhar? É que se assim for devia ainda tomar um banho e descansar um pouco antes de… esqueça hoje é sábado.
– O senhor é idiota?
– Já não é a primeira pessoa que me diz isso. Mas isso não o torna verdadeiro. Acho que prefiro a companhia desta jovem senhora. Não leve a mal senhor padre, mas comparado com ela os senhores são de facto bastante mal-encarados.
– Sozinho, ou com ela, não irá muito longe. Podemos protegê-lo. Toda a gente precisa de amigos…
O padre virou costas e desapareceu pelo mesmo sítio de onde viera. Espreitei ainda na direção do beco mal iluminado, mas vi apenas alguns cães remexendo nos caixotes do lixo.
– Agora a sério… vamos deixarmo-nos de tretas. Não me entenda mal, por si até acreditava na imaculada conceção, na metempsicose das almas, no pai natal, no coelhinho da páscoa e tudo mais... Mas que embuste é este!?
– Não é um embuste. Somos fantasmas. Sinto muito.
Olhei para ela incrédulo.
– Mas e os outros… conseguem ver-nos? Conseguem sentir-nos? Podemos tocá-los? – engoli em seco, começava realmente a acreditar no que me dizia. – Consigo atravessar paredes? E voar?
– Sim. Tudo o que conseguir pensar. O que não é assim tão fácil, uma vez que tudo o que lhe resta são as memórias do seu antigo corpo; e esse não conseguia voar ou atravessar paredes. Os outros veem e sentem a energia que consegue projetar – ou qualquer coisa desse género não fiz uma tese de doutoramento sobre o assunto.
Parámos em frente a uma montra. Vi o reflexo da rapariga no vidro, mas não o meu. Não existia. Ela percebeu o meu pânico e agarrou-me o braço.
– Tem que fazer um esforço consciente. Tem que se imaginar aqui. Tem que pensar no seu antigo corpo. Lembrar-se das suas pernas e braços pendurados. Do tronco e cabeça em equilíbrio.
– Posso imaginar-me mais bonito?
– Claro. Se conseguir. Acha que eu era assim quando estava viva?
E então a minha imagem começou lentamente a materializar-se no vidro da montra. Mas não a reconheci. Não era eu.
– Talvez não se reconheça. Mas agora é assim que os outros o veem.
– Podemos ir comer qualquer coisa? Não me sinto bem.
– Não precisa de comer. Precisa de se refrescar. Venha comigo.
E deslizámos avenida fora, de mão dada, a uma grande velocidade. Parámos num cruzamento e virámos à esquerda. Era quase manhã. Subimos até ao nível do primeiro andar e passámos através de uma janela. Um casal dormia.
A minha amiga acariciou levemente as orelhas do homem, que se mexeu na cama. Depois, puxou-me para um canto escuro e ficámos a observar. O homem abraçou a mulher. Acabou por acordá-la também. Beijou-a. Acariciou-a. Iam fazer amor.
– Venha – segredou-me, puxando-me novamente, desta vez na direção da cama. – Vamos deitar-nos ao lado deles. Devagar. Não nos conseguem ver. É o meu casal favorito. Nunca fiz isto com mais ninguém. Vamos deitar-nos aqui. Precisa apenas de estar atento. No momento certo sentirá uma atração irresistível e o seu espírito será puxado. Não costumam demorar muito tempo, mas fazem-no bastante bem.
Eu não disse palavra. Olhava apenas para a minha amiga. Imaginava-a agora sem o vestido. O meu corpo sobrepôs-se então ao seu. Fechei os olhos. Sentia-me como se estivesse a flutuar numa banheira de água quente. Tentei beijá-la e foi como se caísse sem amparo por uma fenda da terra. Abri os olhos assustado. Ela também tinha os seus olhos fixos em mim. Ela também estava assustada.
– Faz isso outra vez – disse-me.
– Não me disseste ainda o teu nome.
– Hoje sou Sara… faz isso outra vez.
E fiz. Tentei beijá-la novamente. E outra vez uma terrível aceleração sem amparo. Uma queda. Mas depois ela estava ao meu lado. Segurava-me a mão enquanto caíamos. Abracei-a e senti-me cheio como o sol. As pálpebras crestavam-se de sal, como no fim de um dia de praia. Senti-me pleno, como a areia da praia, a água do oceano ou a chuva – nada mais se me podia acrescentar. Todo o universo me pareceu amplificado. Flores garridas e pequenos grãos de areia refulgiam à minha volta. Os lábios de Sara eram um universo cheio de pequenas estrelas, infinitamente drapejados, e eu conseguia ver e sentir todo esse universo até à mais pequena variação. E tudo era afinal infinito, embora pudesse ser contido num único ponto no espaço. Senti-me outra vez tão pleno e cheio como o sol, como se o meu interior tivesse entrado em fusão.
Ouvi então um grito e desaparecemos. Deixámos de ser.
Começou a chover. Naquele ano choveu muito. Coloquei o panfleto no bolso e corri para a estação de metro. Esqueci o assunto até que na sexta-feira, enquanto estava a beber uma cerveja no bar da estação, o papel voltou a aparecer-me nas mãos. Pareceu-me então, tal como anteriormente, um programa válido. Com certeza que seria divertido assistir a uma cerimónia. É uma grande vantagem poder assistir ao desenrolar da vida sem estar emocionalmente envolvido – dá-nos a convicção de que todos os outros são tolos e nós, pelo contrário, geniais – o que não deixa de ser verdade nessas circunstâncias. Paguei a cerveja e pisquei o olho à senhora que estava ao fundo do balcão. Já me conhecia de outras sextas-feiras, pelo que desviou o olhar com desprezo. Sorri – dava-me prazer jogar com as inseguranças das outras pessoas; não sei dizer porquê.
A igreja era um pavilhão industrial recuperado. A entrada era encimada por uma grande cruz que se erguia para além do telhado e que era torneada por una fiada de lâmpadas, ora foscas, ora extremamente luminosas, e que me causou uma forte impressão.
Faltavam cinco minutos para o início da cerimónia – as pessoas acorriam ali, vindas das mais variadas direções, como se como um zumbido subsónico as convocasse. As suas faces tinham todas elas, reparava agora, uma expressão idêntica e vazia.
O interior da igreja era muito mais esplendoroso do que poderia imaginar. Grande e luminoso. O ar reverberava ao som de um órgão. Exatamente à hora anunciada deram início à cerimónia, o que, por alguma razão, me pareceu inesperado. À entrada e em meia dúzia de pontos estratégicos estavam seguranças, impecavelmente vestidos com fatos escuros, gravata e camisa branca. Os seus olhos eram límpidos. Todos repararam em mim. De alguma forma distinguia-me naquela pequena multidão. Eu próprio me sentia diferente do habitual. Talvez fossem as roupas – pareciam-me demasiado casuais, enquanto as das restantes pessoas, tinham um tom de cerimónia.
Entraram os padres – eram vários – e o seu olhar, tal como o dos seguranças, era límpido e inteligente. Vestiam mantos negros, até aos pés, e uns chapéus engraçados que os faziam parecer muito altos. Cada um deles trazia uma pequena taça nas mãos e parecia deslizar sob a multidão. Pensei uma vez mais no meu anorak verde – que desadequado – mas lá fora estava de fato frio e ameaçava novamente chover. Seria um dia especial? Alguma cerimónia especial? Ou as pessoas simplesmente vestem-se bem para vir à igreja? Lembrei-me novamente do panfleto e voltei a retirá-lo do bolso – começava a ficar amarrotado. Nesse momento a música parou. E um murmúrio crescente, vindo de todas aquelas gargantas crentes e adestradas, rolou como um trovão até que se sumiu num suspiro sincronizado.
– Irmãos! Estamos hoje aqui mais uma vez reunidos para celebrar a nossa união com o Senhor. Louvado seja Deus nas alturas e Pai Tomé cá na Terra – disse um dos padres através da potente aparelhagem de som.
Pai Tomé? Será que ouvi bem? Pai Tomé? Com um sorriso trocista nos lábios, balancei o meu cotovelo de encontro ao meu vizinho do lado, procurando um centímetro que fosse da sua cumplicidade – mas os seus olhos faiscaram e nenhum dos músculos da sua cara se moveu. Engoli em seco e virei-me novamente para a frente. Não te enerves. Está tudo bem.
Entrou um outro padre muito gordo, mestiço e com uma barba rala. Trajava de forma diferente. As suas vestes eram mais vistosas. Talvez fosse o Pai Tomé.
– Louvada seja a palavra de Pai Tomé! – ecoou a multidão.
– Irmãos! Quero partilhar convosco algumas palavras – disse. – Temos hoje entre nós alguém que precisa da nossa ajuda! Alguém que nos visita hoje pela primeira vez e que, meus irmãos, e minhas irmãs – sorriu –, tem levado uma vida absolutamente dissoluta! – um burburinho da multidão acompanhou estas últimas palavras.
Acho que me vou pirar daqui rapidamente – pensei. Olhei em volta e os meus olhos cruzaram-se com os de uma jovem rapariga de vestido negro que me fazia sinais.
– Esse jovem, porque é de um jovem que vos falo, não acredita em Deus todo poderoso; não acredita em nada, meus irmãos. Como é possível viver uma vida de felicidade, não acreditando em nada? Esse jovem precisa da nossa ajuda.
Era gira a rapariga. Se lhe sacasse o número de telefone não seria uma noite perdida. Desloquei-me na sua direção. Reparei então que me fazia sinais para parar. Lentamente, e apenas quando lhe pareceu seguro, veio ao meu encontro.
– Cuidado! Corre perigo de vida – sussurrou-me.
– É o que acontece a quem está vivo – gracejei.
– Tem que desaparecer imediatamente daqui. Rasteje por entre as cadeiras até às últimas filas, que depois eu crio uma distração.
– Está a falar a sério? Posso ficar com o seu número de telefone?... Só para o caso de precisar de alguma coisa, sabe.
– Estou a falar muito a sério. Fuja.
O Pai Tomé retomou o seu discurso:
– Ele está aqui entre nós. E vós sabeis quem ele é.
Levantei a cabeça brevemente. Dois dos padres começaram então a movimentar-se entre os fiéis, vindo na minha direção. Bolas, pareciam deslizar. Como é que eles faziam aquilo? As suas cabeças nem sequer oscilavam. Que importa. Tomei por bom o conselho da rapariga. Não me deu o número de telefone, mas sempre podia esperar por ela à saída.
– Não resistas pequeno irmão. Queremos ajudar-te. Mostra-te.
Comecei a rastejar entre as cadeiras. A princípio sem grandes dificuldades, mas depois começaram a pontapear-me e a pisar-me. Levantei-me com um olhar de censura.
– Aí está ele. Vem até aqui. Agarrem-no! – e apontou diretamente para mim.
– Oh, bolas! Que vem a ser isto!
Estava prestes a perder o controle sobre as minhas funções urinárias. Mas nesse momento a minha jovem amiga começou a gemer no outro corredor. Parecia estar a entrar em transe. Todos os olhares se viraram então na sua direção. Devo dizer que era absolutamente excitante ouvi-la.
Vários homens acorreram e elevaram-na no ar, por cima das suas cabeças, enquanto ela prosseguia com os gemidos. Os sacerdotes seguiram-nos. Pousaram-na em cima de um altar. Tinha mesmo que lhe pedir o número de telefone.
Devia ter aproveitado para fugir – era esta, com certeza, a manobra de diversão –, mas em vez disso fiquei perfeitamente siderado, as botas coladas ao chão e os braços caídos junto ao corpo. Dois dos seguranças agarram-me e eu acompanhei-os até ao altar sem oferecer a mínima resistência. Fizeram com que me ajoelhasse perante o grande padre que me benzeu a testa, os olhos e ainda a boca. Foi precisamente nesse momento que perdi os sentidos.
Acordei na paragem de autocarro, já de madrugada, deitado em cima do banco. Estava muito frio e chovia novamente.
De repente chegou um autocarro e abriu a porta. Desceu um homem.
Levantei-me a custo, pois o meu corpo estava bastante dorido. Ou talvez nem fosse isso, sentia-me simplesmente mal. Reconheci-o. Era o homem que estava ao meu lado na cerimónia. O seu olhar era agora perfeitamente límpido e vívido.
– O que se passou?
– Não se lembra?
– Não.
– Ainda bem.
– Está a brincar?
– Não.
Lembrei-me da rapariga.
– O que é que fizeram à rapariga?
– A rapariga? Ah, sim. A rapariga…
– Fique desde já sabendo que vou apresentar queixa.
– Onde? Contra quem? Você é deveras divertido. Não faz a mínima ideia do que diz. Ah, foi realmente impressionante, devo dizê-lo. Não é todos dias que participamos num espetáculo daqueles. Duvido que haja nova cerimónia em breve. Consegue ver a diferença nos meus olhos?
– Sim, de fato.
– Obrigado.
– Pelo quê?
– Pelo seu corpo, claro. Refrescou-nos a todos. É de fato um pequeno preço por tão grande benefício, percebe? E agora poderá fazer como nós, percebe?
– Não.
Um camião passou a apitar, com a buzina a fundo, encandeando-nos com os faróis. No momento seguinte o homem havia desaparecido. Estava novamente sozinho.
Do outro lado da rua avistei a rapariga do vestido negro, cambaleado. Dirigi-me a ela.
– Não me disse o seu nome.
– Não tenho nome.
– O que aconteceu?
– É melhor não saber.
– Parece ser a opinião geral.
– Vai perceber por si próprio. As coisas vão começar a parecer-lhe diferentes. Eu avisei-o. Devia ter fugido.
– Eu tentei. Porque me tentou ajudar?
Caminhávamos ao longo da avenida deserta. Não parecia interessada em responder-me.
– Bom, pelo menos estamos vivos?
– Não esteja tão certo disso.
– Como assim!?
– Não se exalte. A culpa não foi minha. Aliás a culpa foi única e exclusivamente sua. Espero que tenha apreciado o seu programa de sexta-feira à noite.
– Já não quero o seu número de telefone.
– Pena.
– Está bem, talvez seja precipitação minha. Diga que eu decoro. Tenho excelente memória para números de telefone.
– Não me faça rir. Estou demasiado cansada. Seria o primeiro fantasma com boa memória.
– Fantasma?
– Sim. Abandonou o seu corpo há pouco tempo. Por isso é que não consegue ainda notar a diferença. Mas gradualmente irá perceber o quão frágil é uma alma sem corpo (um fantasma, quer eu dizer). Sem corpo, sem a sua memória, que gradualmente se vai desvanecendo, a alma é essencialmente vazia. É isso que eles fazem nas cerimónias. Atraem um corpo para que todos se possam refrescar. Cada um deles toma o corpo por breves momentos, em sucessão, para que se reavivem as almas. Claro que é quase sempre demais para o corpo em questão – acontece muitas vezes um descolamento da alma. Como no seu caso…
– Espere lá. Estou a aceitar isto com toda a calma do mundo. Está a dizer-me que há vida para além da morte? Está a dizer-me a nossa alma, o nosso espírito, é eterno?
– Não, não é. Se estiver durante muito tempo sem tomar outro corpo, a alma desaparece. Apaga-se simplesmente.
– Não quero viver para sempre. Não. Isso seria horrível. Mas posso tomar o seu corpo agora?
– Tem tanta piada... Também sou um fantasma. E toda a memória sensorial que tinha acumulada, ofereci-a naquela pequena manobra de diversão.
– Porque é que me ajudou?
– Ora, porque é uma barbárie!
– E como é que mantém os seus olhos límpidos. Não me diga que não participa na barbárie. Como é que se alimenta?
– Há outras formas. O Pai Tomé conhece-as; mas é mais conveniente para ele que tudo se mantenha conforme está.
– Que outras formas?
– É difícil de explicar…. Há certos momentos em que as pessoas se ausentam do seu corpo. Nesses momentos é possível refrescarmo-nos sem prejudicar ninguém.
– Que momentos?
– Por vezes quando dormem – mas não sempre. Ou então quando a sobrecarga sensorial é tão grande que dois espíritos podem coabitar no mesmo corpo por momentos… por exemplo enquanto fazem amor ou… dão uma martelada num dedo.
– A sério?
– Sim. É deveras fascinante.
– Ensina-me?
– Basta estar atento. Não sou professora de ninguém.
– Mas… espera lá! Se eram todos fantasmas como é que os consegui ver e sentir? Deram-me uns bons pontapés!
Um dos padres, um homem muito alto, saiu de um beco e colocou-se à nossa frente.
– Já começa com más companhias, devo dizer-lhe – a sua voz era profunda e cavernosa.
– Vai para a puta que te pariu! – respondeu ela.
– Também não vale a pena ofender assim dessa maneira a mãe do senhor padre – disse eu.
– Eu posso ajudá-lo – disse o padre.
– Ótimo! Já agora, uma questão que o senhor padre talvez me possa esclarecer. Dada a minha nova situação, tenho que continuar a ir trabalhar? É que se assim for devia ainda tomar um banho e descansar um pouco antes de… esqueça hoje é sábado.
– O senhor é idiota?
– Já não é a primeira pessoa que me diz isso. Mas isso não o torna verdadeiro. Acho que prefiro a companhia desta jovem senhora. Não leve a mal senhor padre, mas comparado com ela os senhores são de facto bastante mal-encarados.
– Sozinho, ou com ela, não irá muito longe. Podemos protegê-lo. Toda a gente precisa de amigos…
O padre virou costas e desapareceu pelo mesmo sítio de onde viera. Espreitei ainda na direção do beco mal iluminado, mas vi apenas alguns cães remexendo nos caixotes do lixo.
– Agora a sério… vamos deixarmo-nos de tretas. Não me entenda mal, por si até acreditava na imaculada conceção, na metempsicose das almas, no pai natal, no coelhinho da páscoa e tudo mais... Mas que embuste é este!?
– Não é um embuste. Somos fantasmas. Sinto muito.
Olhei para ela incrédulo.
– Mas e os outros… conseguem ver-nos? Conseguem sentir-nos? Podemos tocá-los? – engoli em seco, começava realmente a acreditar no que me dizia. – Consigo atravessar paredes? E voar?
– Sim. Tudo o que conseguir pensar. O que não é assim tão fácil, uma vez que tudo o que lhe resta são as memórias do seu antigo corpo; e esse não conseguia voar ou atravessar paredes. Os outros veem e sentem a energia que consegue projetar – ou qualquer coisa desse género não fiz uma tese de doutoramento sobre o assunto.
Parámos em frente a uma montra. Vi o reflexo da rapariga no vidro, mas não o meu. Não existia. Ela percebeu o meu pânico e agarrou-me o braço.
– Tem que fazer um esforço consciente. Tem que se imaginar aqui. Tem que pensar no seu antigo corpo. Lembrar-se das suas pernas e braços pendurados. Do tronco e cabeça em equilíbrio.
– Posso imaginar-me mais bonito?
– Claro. Se conseguir. Acha que eu era assim quando estava viva?
E então a minha imagem começou lentamente a materializar-se no vidro da montra. Mas não a reconheci. Não era eu.
– Talvez não se reconheça. Mas agora é assim que os outros o veem.
– Podemos ir comer qualquer coisa? Não me sinto bem.
– Não precisa de comer. Precisa de se refrescar. Venha comigo.
E deslizámos avenida fora, de mão dada, a uma grande velocidade. Parámos num cruzamento e virámos à esquerda. Era quase manhã. Subimos até ao nível do primeiro andar e passámos através de uma janela. Um casal dormia.
A minha amiga acariciou levemente as orelhas do homem, que se mexeu na cama. Depois, puxou-me para um canto escuro e ficámos a observar. O homem abraçou a mulher. Acabou por acordá-la também. Beijou-a. Acariciou-a. Iam fazer amor.
– Venha – segredou-me, puxando-me novamente, desta vez na direção da cama. – Vamos deitar-nos ao lado deles. Devagar. Não nos conseguem ver. É o meu casal favorito. Nunca fiz isto com mais ninguém. Vamos deitar-nos aqui. Precisa apenas de estar atento. No momento certo sentirá uma atração irresistível e o seu espírito será puxado. Não costumam demorar muito tempo, mas fazem-no bastante bem.
Eu não disse palavra. Olhava apenas para a minha amiga. Imaginava-a agora sem o vestido. O meu corpo sobrepôs-se então ao seu. Fechei os olhos. Sentia-me como se estivesse a flutuar numa banheira de água quente. Tentei beijá-la e foi como se caísse sem amparo por uma fenda da terra. Abri os olhos assustado. Ela também tinha os seus olhos fixos em mim. Ela também estava assustada.
– Faz isso outra vez – disse-me.
– Não me disseste ainda o teu nome.
– Hoje sou Sara… faz isso outra vez.
E fiz. Tentei beijá-la novamente. E outra vez uma terrível aceleração sem amparo. Uma queda. Mas depois ela estava ao meu lado. Segurava-me a mão enquanto caíamos. Abracei-a e senti-me cheio como o sol. As pálpebras crestavam-se de sal, como no fim de um dia de praia. Senti-me pleno, como a areia da praia, a água do oceano ou a chuva – nada mais se me podia acrescentar. Todo o universo me pareceu amplificado. Flores garridas e pequenos grãos de areia refulgiam à minha volta. Os lábios de Sara eram um universo cheio de pequenas estrelas, infinitamente drapejados, e eu conseguia ver e sentir todo esse universo até à mais pequena variação. E tudo era afinal infinito, embora pudesse ser contido num único ponto no espaço. Senti-me outra vez tão pleno e cheio como o sol, como se o meu interior tivesse entrado em fusão.
Ouvi então um grito e desaparecemos. Deixámos de ser.
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