A Organização
A Organização tornou-se incontrolável. A sua missão deturpou-se; serve, agora mais do que nunca, o seu próprio crescimento e preservação. O seu pretexto continua a ser o mesmo, mas é agora apenas uma fachada. É impossível compreender a Organização.
Só podemos contactar com a Organização de forma indireta, recorrendo aos funcionários de ligação – que são os seus delegados de comunicação. Porém, embora sabendo mais do que nós, cidadãos, sobre os seus meandros e funcionamento, têm, muitas vezes contra as nossas próprias expectativas, um conhecimento e poder muito limitados sobre esta.
A Organização tem um grande predomínio e influência na vida de todos os cidadãos. A sua influência é tão constante e contínua que se torna impercetível. Ouvem-se, contudo, rumores, com origem em determinados grupos anarquistas, de que o barco não tem timoneiro; de que vamos à deriva; de que ninguém controla a Organização; de que esta se transformou num organismo vivo e autodeterminado.
A Organização tornou-se de tal forma grande e inacessível, e a sua hierarquia de tal modo longa e complexa, que é impossível a alguém (mesmo pertencendo à Organização) conhecer o seu líder. A hierarquia é rígida e os seus funcionários conhecem-lhe apenas dois ou três níveis. Contudo, as ordens sucedem-se, o que poderá fazer supor uma vontade efetiva que dirige a Organização. Há quem argumente que estas ordens e respetivas execuções são apenas o produto de desentendimentos entre os funcionários. Ou ainda, que não existe mais do que vários processos, outrora desenhados e colocados em funcionamento, e que desde então se desenrolam automaticamente, sem qualquer controlo crítico. Será o movimento destes processos eterno? Não será necessária uma inteligência, uma vontade, para mantê-los em funcionamento, para evitar a sua desintegração na crescente entropia? Ou não será a lenta desintegração dos processos aquilo que hoje observamos? Uma desintegração demasiado lenta para que dela tenhamos plena consciência no nosso intervalo de vida.
Os funcionários são inumeráveis e inomináveis. A Organização é tão imensa que se torna praticamente impossível falarmos duas vezes com o mesmo funcionário. Não nos é dada a possibilidade de escolher com quem falamos ou de voltarmos a contactar alguém com quem falámos previamente; só por um mero acaso isso poderia acontecer – acaso cada vez mais improvável, pois a Organização não para de crescer.
Conta-se que, no início, quando a Organização foi fundada, as relações com os cidadãos eram muito mais diretas e pessoais. No entanto, dadas as crescentes necessidades que a Organização tinha que provir e o correspondente crescimento exponencial de tarefas de controlo e verificação, de modo a assegurar um serviço sem falhas e a eliminar a cadeia de corrupção e favores especiais que então existia, a Organização tornou-se a muitos níveis impenetrável, impessoal, anónima. Atualmente, os interlocutores são designados segundo regras que, para nós, cidadãos, são desconhecidas.
O carácter dos funcionários, as suas intenções e desejos, são completamente imprevisíveis e, em grande parte, incompreensíveis.
Os funcionários são esquivos. Embora alguns andem pela cidade, saindo do grande edifício sede, a executar as várias ordens que lhes são ditadas, procuram fazê-lo, na maioria das vezes, sem serem notados pelos cidadãos. Em contrapartida, a disponibilidade da Organização para com os cidadãos é, segundo a própria, total e completa: podemos contactá-la sempre que o desejarmos. Por vezes, é necessário aguardar algum tempo, o que se compreende visto que os funcionários, apesar de inumeráveis, têm que responder a um grande número de solicitações e que realizar um sem-número de tarefas que asseguram o correto funcionamento da Organização.
Podemos falar com os funcionários de dois modos diferentes: dirigindo-nos diretamente ao edifício sede da Organização ou através de telefone.
O edifício sede é uma estrutura gigantesca que se situa nos limites da cidade, a nordeste, mas que é muito maior do que a própria cidade; a pé, segundo os relatos de alguns viajantes, leva mais de um dia a contornar; ninguém sabe quantos andares tem o edifício, vemo-lo apenas penetrar as suas nuvens perpétuas. A norte do edifício não vive ninguém, pois a noite, a sombra pelo menos, é, segundo dizem, também perpétua. Mas mais impressionante ainda é o facto de o edifício se estender por debaixo da terra; ninguém sabe até que profundidade, havendo mesmo relatos de que as suas galerias se estendem por debaixo da cidade e muito mais além.
Todo este espaço é absolutamente necessário para albergar todos os funcionários e respetivas famílias, muitos dos quais nunca saem do edifício, bem como os processos de todos os cidadãos, a sua história e reclamações (todos guardados em papel, com os respetivos duplicados, ou triplicados, em cada um dos vários departamentos); já para não falar na documentação associada aos processos internos da Organização que ocupam, segundo se calcula, mil vezes mais espaço do que tudo o resto.
Em relação à dimensão da Organização, podemos fazer pouco mais do que especular. Durante muito tempo a Organização dependeu do exterior. Inicialmente os seus funcionários viviam mesmo no exterior. Mais tarde, devido às exigências laborais da Organização e por questões práticas, os funcionários passaram a viver no interior do novo edifício sede, que sofria, a todo o momento, constantes ampliações. Passou então a ser necessário abastecer o edifício com todos os bens que esta não produzia, mas que eram essenciais à sobrevivência dos funcionários residentes, como por exemplo, géneros alimentícios, vestuário ou papel. Nessa altura era ainda possível estimar número de funcionários da Organização, e, portanto, a sua própria dimensão, com base nos bens que importavam. Isto tornou-se completamente impossível a partir do momento em que a Organização decidiu tornar-se autónoma. Deixou, de um momento para o outro e sem qualquer aviso prévio, de receber quaisquer bens do exterior. Não foi sequer dada aos cidadãos uma verdadeira explicação para este facto; anunciou-se apenas que a decisão fora tomada com vista a uma maior eficiência e comodidade. Podemos apenas deduzir que a produção de todos os bens essenciais à Organização passou a ser assegurada pela própria, no seu interior. Observou-se, por essa altura, um crescimento extraordinário do edifício sede: as obras de ampliação não cessavam, dia e noite, acrescentando novas camadas e andares, até que se tornou impossível perceber a dimensão do seu crescimento, que se estendia para além da nossa vista. O edifício tornou-se um colosso.
Em contrapartida, a sala de receção dos cidadãos é relativamente exígua. Trata-se de um corredor com pouco mais de um metro de largura, por cinco de comprimento. O teto é também muito baixo; os cidadãos mais altos, como é o meu caso, têm que dobrar o pescoço enquanto esperam. A sala não tem bancos e um funcionário que está à porta impede de nos sentarmos no chão, advertindo-nos que o corredor deve estar a todo momento desimpedido para a passagem dos funcionários. Ao fundo existe um guichet com uma pequena abertura. O mais incómodo é o facto de não existir um horário de atendimento definido. Nem mesmo o próprio funcionário que está à porta sabe a que horas abre ou fecha o guichet; diz-nos apenas que temos que aguardar.
Quando está aberto, o guichet é protegido por um vidro grosso que quase impede a comunicação; quando encerra, o vidro é removido, sendo substituído por um espesso cortinado que não deixa passar a luz. Por detrás deste cortinado, através da pequena abertura, ouve-se sempre muito barulho: conversas, gargalhadas, discussões.
Maior parte dos cidadãos já desistiu de ir diretamente ao edifício sede quando tem alguma questão a resolver com a Organização. Preferem, para tal, utilizar o telefone.
Basta levantar o auscultador e aguardar alguns segundos (por vezes, minutos). Ouve-se um sinal ininterrupto que, segundo alguns dos meus mais distintos compatriotas, cumpre uma função bem definida: preparar o nosso cérebro para entender a linguagem dos funcionários de ligação. Os funcionários que atendem os telefones são, de resto, tal como aqueles que atendem diretamente o público, de uma casta específica: são intermediários entre a população e o interior da Organização. Estes são os únicos capazes de, na Organização, compreenderem e falarem, ainda que muitas vezes precariamente, a nossa linguagem, bem como a linguagem da Organização, de modo a poderem transmitir os nossos pedidos, requisições e reclamações. No entanto, este trabalho não é, de modo nenhum, fácil. Compreender e intermediar entre estas duas linguagens tão diferentes não pode ser fácil. Por vezes, compreende-nos perfeitamente a nós, cidadãos, mas são incapazes de transmitir os nossos pedidos para os funcionários de Nível I, que já não contactam diretamente com o exterior da Organização, e que colocam em andamento os vários processos relativos às requisições ou reclamações dos cidadãos.
Os funcionários de ligação têm poderes muito limitados e não obedecem todos a uma mesma hierarquia. Chegam-se a observar discussões entre funcionários com ordens contraditórias. Em todo o caso, estes funcionários revelam-se, na maior parte dos casos, impotentes perante a Organização e os seus processos internos – isto apesar de toda a empatia demonstrada perante os nossos problemas, compreendendo-os e reconhecendo-os. Outras vezes, são incapazes de nos compreender corretamente, tomando iniciativas organizacionalmente eficazes, mas que vão exatamente contra os nossos pedidos.
Todo o processo de reclamação, ou mesmo requisição, é por demais desgastante, sendo necessário muita persistência e paciência para falar com um sem-número de funcionários, durante longas horas. Alguns deles quase não nos respondem; outros, porém, falam-nos interminavelmente sobre os mais variados assuntos, mas especialmente sobre aquilo que julgam saber acerca do funcionamento interno da Organização. É-nos, contudo, totalmente impossível distinguir, por entre toda aquela verborreia, a verdade ou qualquer informação verdadeiramente útil; sendo que ela nos pode ser transmitida até pelo menos provável dos interlocutores – simplesmente não o sabemos. Por vezes, quando julgamos ter o processo bem encaminhado, perto da sua resolução, um erro ou confusão de última hora vem baralhar tudo novamente, voltando, se tivermos sorte, tudo ao início.
Aos funcionários estão interditos quaisquer contactos íntimos com cidadãos. É, também, impossível abandonar a Organização: não existem despedimentos, sob qualquer pretexto, mesmo perante declarada incompetência ou absoluto desleixo, o que conduz a uma prestação de serviços muitas vezes caótica; essa má vontade dos funcionários é também consequência do seu descontentamento em continuar ao serviço, que não podem abandonar – mesmo que alguém fugisse para a cidade ou para o deserto, abdicando do conforto proporcionado pela Organização, acabaria por ser implacavelmente perseguido por outros funcionários encarregados de lhe transmitir as ordens (a hierarquia, nunca reconhece que o funcionário abandonou o serviço, pois tal seria impossível, e continua a comportar-se normalmente, apenas tomando em consideração o facto do funcionário estar temporariamente ausente do edifício sede); este é livre de cumprir as ordens ou não, como em qualquer altura, mas estas não param de chegar, sendo-lhe lidas em voz alta.
Todos os funcionários descendem, portanto, de uma linhagem bem definida. No entanto, como é impossível controlar absolutamente todos os funcionários – sendo a sua liberdade inegável –, apesar de interditos, acontecem por vezes encontros de índole sexual entre funcionários, de ambos os sexos, e cidadãos. Estes contactos, não são, contudo, desconhecidos da Organização; talvez sejam mesmo determinados por esta. Os funcionários são, quando assim o desejam, extremamente sedutores, sendo impossível resistir-lhes. As suas descrições sobre o funcionamento da Organização são como o canto das sereias, sedutores como a tecnologia, como o poder que transpiram.
Os frutos destas uniões aparentemente fortuitas são mais tarde recolhidos pela própria Organização. Quando chega o momento certo – sendo este determinado pelas necessidades da Organização, quer no que respeita ao número de funcionários, quer ao perfil requerido –, um dos funcionários de ligação entrega, em mão, ao visado, uma mensagem da Organização, normalmente assinada por um funcionário superior, em que são reveladas as circunstâncias da sua conceção e a sua condição de funcionário. Não é possível rejeitar esta condição, da mesma forma que não é possível abandonar a Organização; não é uma proposta de adesão, mas apenas uma comunicação. Normalmente, não decorre mais do que quinze minutos até que a primeira ordem lhe seja comunicada. Poderá ser simplesmente um pedido para se apresentar no edifício sede, ou então, alguma pequena tarefa que exija pouco conhecimento. De qualquer forma, como se compreende, ao transformar alguém que, até determinado momento, eventualmente tardio, viveu como um cidadão comum, num funcionário, não se lhe pode exigir que consiga compreender a Organização, o seu funcionamento interno, e a natureza das tarefas a desempenhar, por isso é indiferente o seu grau de complexidade; não se espera, realmente, que ele a consiga realizar. Não podemos exigir destes novos funcionários o que não exigimos de nenhuns outros, mesmo aqueles de linhagem pura. Começam, invariavelmente, por exercer funções como funcionários de ligação pois conseguem comunicar perfeitamente com os cidadãos, característica que é cada vez mais rara na Organização. Caso sejam muito dedicados e curiosos, estudem todos os processos da Organização e apreendam a sua linguagem, serão, obrigatoriamente, promovidos.
A minha mãe era uma cidadã, meu pai um funcionário; segundo rumores, um funcionário superior, o que é ainda mais raro e invulgar. Recebi a semana passada a comunicação da minha condição de funcionário. Tenho 30 anos e sou solteiro. Caso não o fosse teria que abandonar a minha família para sempre.
Sou também um anarquista convicto. Quer isto dizer que abomino a Organização, que recuso o seu controle, o seu peso, que a combato desde que me lembro. Tudo isto me parece demasiado irónico, esquizofrénico. Sou funcionário e anarquista. Inicialmente, pensei que seria uma grande oportunidade para combater a Organização a partir do seu interior. Cedo compreendi que pouco se poderia fazer para atrapalhar os processos da Organização, que são extremamente complexos, contemplando sucessivos erros e confusões – por vezes, não são mais do que isso mesmo. Sabotá-los é, por vezes, apenas apressar a sua correta conclusão. Outros são mais fáceis de sabotar, são mais vulneráveis, mas a sua importância é nula. Dir-se-ia que muitos dos processos visam apenas camuflar as verdadeiras tarefas, tornando-as invisíveis na sua imensidão.
Percebi então que, se queria verdadeiramente destruir a Organização, libertar-me do seu jugo, do seu brutal peso, teria que penetrar mais profundamente no seu âmago, teria que a compreender, teria que me tornar um funcionário superior. Comecei então a estudar afincadamente a linguagem da Organização e os seus processos. Fui rapidamente notado e, consequentemente, promovido: sou agora funcionário de Nível I. Sinto que serei, em breve, novamente promovido. O meu conhecimento da Organização é cada vez mais profundo; estou cada vez mais embrenhado.
Sei, com toda certeza, que a Organização conhece a minha anterior atividade como anarquista. A Organização conhece tudo; embora cada um dos funcionários tenha apenas um conhecimento limitado.
Desconfio agora que aquilo que inicialmente me pareceu um erro da Organização, que poderia aproveitar a favor da causa anarquista, talvez seja um elaborado plano com vista à minha total absorção e eliminação.
A Organização é fascinante, o seu poder e complexidade lúbricos. A sua complexidade é fractal. Não tem centro, não tem topo. É infinita, é reconfortante. A sua solidão, o seu vazio, são reais, mas a sua aparência de grupo, a esperança no racional dos seus processos, que a todo o momento parecemos descobrir, é mais forte, é mais aconchegante.
Passo intermináveis horas à minha secretária, alumiado por um pequeno candeeiro, consultando documentos do imenso arquivo da Organização. Temos acesso a tudo, embora só consigamos compreender uma pequena fração. Sou lentamente amaciado e corroído pelos seus processos maviosos. Serei deglutido, serei mais um funcionário…
Só podemos contactar com a Organização de forma indireta, recorrendo aos funcionários de ligação – que são os seus delegados de comunicação. Porém, embora sabendo mais do que nós, cidadãos, sobre os seus meandros e funcionamento, têm, muitas vezes contra as nossas próprias expectativas, um conhecimento e poder muito limitados sobre esta.
A Organização tem um grande predomínio e influência na vida de todos os cidadãos. A sua influência é tão constante e contínua que se torna impercetível. Ouvem-se, contudo, rumores, com origem em determinados grupos anarquistas, de que o barco não tem timoneiro; de que vamos à deriva; de que ninguém controla a Organização; de que esta se transformou num organismo vivo e autodeterminado.
A Organização tornou-se de tal forma grande e inacessível, e a sua hierarquia de tal modo longa e complexa, que é impossível a alguém (mesmo pertencendo à Organização) conhecer o seu líder. A hierarquia é rígida e os seus funcionários conhecem-lhe apenas dois ou três níveis. Contudo, as ordens sucedem-se, o que poderá fazer supor uma vontade efetiva que dirige a Organização. Há quem argumente que estas ordens e respetivas execuções são apenas o produto de desentendimentos entre os funcionários. Ou ainda, que não existe mais do que vários processos, outrora desenhados e colocados em funcionamento, e que desde então se desenrolam automaticamente, sem qualquer controlo crítico. Será o movimento destes processos eterno? Não será necessária uma inteligência, uma vontade, para mantê-los em funcionamento, para evitar a sua desintegração na crescente entropia? Ou não será a lenta desintegração dos processos aquilo que hoje observamos? Uma desintegração demasiado lenta para que dela tenhamos plena consciência no nosso intervalo de vida.
Os funcionários são inumeráveis e inomináveis. A Organização é tão imensa que se torna praticamente impossível falarmos duas vezes com o mesmo funcionário. Não nos é dada a possibilidade de escolher com quem falamos ou de voltarmos a contactar alguém com quem falámos previamente; só por um mero acaso isso poderia acontecer – acaso cada vez mais improvável, pois a Organização não para de crescer.
Conta-se que, no início, quando a Organização foi fundada, as relações com os cidadãos eram muito mais diretas e pessoais. No entanto, dadas as crescentes necessidades que a Organização tinha que provir e o correspondente crescimento exponencial de tarefas de controlo e verificação, de modo a assegurar um serviço sem falhas e a eliminar a cadeia de corrupção e favores especiais que então existia, a Organização tornou-se a muitos níveis impenetrável, impessoal, anónima. Atualmente, os interlocutores são designados segundo regras que, para nós, cidadãos, são desconhecidas.
O carácter dos funcionários, as suas intenções e desejos, são completamente imprevisíveis e, em grande parte, incompreensíveis.
Os funcionários são esquivos. Embora alguns andem pela cidade, saindo do grande edifício sede, a executar as várias ordens que lhes são ditadas, procuram fazê-lo, na maioria das vezes, sem serem notados pelos cidadãos. Em contrapartida, a disponibilidade da Organização para com os cidadãos é, segundo a própria, total e completa: podemos contactá-la sempre que o desejarmos. Por vezes, é necessário aguardar algum tempo, o que se compreende visto que os funcionários, apesar de inumeráveis, têm que responder a um grande número de solicitações e que realizar um sem-número de tarefas que asseguram o correto funcionamento da Organização.
Podemos falar com os funcionários de dois modos diferentes: dirigindo-nos diretamente ao edifício sede da Organização ou através de telefone.
O edifício sede é uma estrutura gigantesca que se situa nos limites da cidade, a nordeste, mas que é muito maior do que a própria cidade; a pé, segundo os relatos de alguns viajantes, leva mais de um dia a contornar; ninguém sabe quantos andares tem o edifício, vemo-lo apenas penetrar as suas nuvens perpétuas. A norte do edifício não vive ninguém, pois a noite, a sombra pelo menos, é, segundo dizem, também perpétua. Mas mais impressionante ainda é o facto de o edifício se estender por debaixo da terra; ninguém sabe até que profundidade, havendo mesmo relatos de que as suas galerias se estendem por debaixo da cidade e muito mais além.
Todo este espaço é absolutamente necessário para albergar todos os funcionários e respetivas famílias, muitos dos quais nunca saem do edifício, bem como os processos de todos os cidadãos, a sua história e reclamações (todos guardados em papel, com os respetivos duplicados, ou triplicados, em cada um dos vários departamentos); já para não falar na documentação associada aos processos internos da Organização que ocupam, segundo se calcula, mil vezes mais espaço do que tudo o resto.
Em relação à dimensão da Organização, podemos fazer pouco mais do que especular. Durante muito tempo a Organização dependeu do exterior. Inicialmente os seus funcionários viviam mesmo no exterior. Mais tarde, devido às exigências laborais da Organização e por questões práticas, os funcionários passaram a viver no interior do novo edifício sede, que sofria, a todo o momento, constantes ampliações. Passou então a ser necessário abastecer o edifício com todos os bens que esta não produzia, mas que eram essenciais à sobrevivência dos funcionários residentes, como por exemplo, géneros alimentícios, vestuário ou papel. Nessa altura era ainda possível estimar número de funcionários da Organização, e, portanto, a sua própria dimensão, com base nos bens que importavam. Isto tornou-se completamente impossível a partir do momento em que a Organização decidiu tornar-se autónoma. Deixou, de um momento para o outro e sem qualquer aviso prévio, de receber quaisquer bens do exterior. Não foi sequer dada aos cidadãos uma verdadeira explicação para este facto; anunciou-se apenas que a decisão fora tomada com vista a uma maior eficiência e comodidade. Podemos apenas deduzir que a produção de todos os bens essenciais à Organização passou a ser assegurada pela própria, no seu interior. Observou-se, por essa altura, um crescimento extraordinário do edifício sede: as obras de ampliação não cessavam, dia e noite, acrescentando novas camadas e andares, até que se tornou impossível perceber a dimensão do seu crescimento, que se estendia para além da nossa vista. O edifício tornou-se um colosso.
Em contrapartida, a sala de receção dos cidadãos é relativamente exígua. Trata-se de um corredor com pouco mais de um metro de largura, por cinco de comprimento. O teto é também muito baixo; os cidadãos mais altos, como é o meu caso, têm que dobrar o pescoço enquanto esperam. A sala não tem bancos e um funcionário que está à porta impede de nos sentarmos no chão, advertindo-nos que o corredor deve estar a todo momento desimpedido para a passagem dos funcionários. Ao fundo existe um guichet com uma pequena abertura. O mais incómodo é o facto de não existir um horário de atendimento definido. Nem mesmo o próprio funcionário que está à porta sabe a que horas abre ou fecha o guichet; diz-nos apenas que temos que aguardar.
Quando está aberto, o guichet é protegido por um vidro grosso que quase impede a comunicação; quando encerra, o vidro é removido, sendo substituído por um espesso cortinado que não deixa passar a luz. Por detrás deste cortinado, através da pequena abertura, ouve-se sempre muito barulho: conversas, gargalhadas, discussões.
Maior parte dos cidadãos já desistiu de ir diretamente ao edifício sede quando tem alguma questão a resolver com a Organização. Preferem, para tal, utilizar o telefone.
Basta levantar o auscultador e aguardar alguns segundos (por vezes, minutos). Ouve-se um sinal ininterrupto que, segundo alguns dos meus mais distintos compatriotas, cumpre uma função bem definida: preparar o nosso cérebro para entender a linguagem dos funcionários de ligação. Os funcionários que atendem os telefones são, de resto, tal como aqueles que atendem diretamente o público, de uma casta específica: são intermediários entre a população e o interior da Organização. Estes são os únicos capazes de, na Organização, compreenderem e falarem, ainda que muitas vezes precariamente, a nossa linguagem, bem como a linguagem da Organização, de modo a poderem transmitir os nossos pedidos, requisições e reclamações. No entanto, este trabalho não é, de modo nenhum, fácil. Compreender e intermediar entre estas duas linguagens tão diferentes não pode ser fácil. Por vezes, compreende-nos perfeitamente a nós, cidadãos, mas são incapazes de transmitir os nossos pedidos para os funcionários de Nível I, que já não contactam diretamente com o exterior da Organização, e que colocam em andamento os vários processos relativos às requisições ou reclamações dos cidadãos.
Os funcionários de ligação têm poderes muito limitados e não obedecem todos a uma mesma hierarquia. Chegam-se a observar discussões entre funcionários com ordens contraditórias. Em todo o caso, estes funcionários revelam-se, na maior parte dos casos, impotentes perante a Organização e os seus processos internos – isto apesar de toda a empatia demonstrada perante os nossos problemas, compreendendo-os e reconhecendo-os. Outras vezes, são incapazes de nos compreender corretamente, tomando iniciativas organizacionalmente eficazes, mas que vão exatamente contra os nossos pedidos.
Todo o processo de reclamação, ou mesmo requisição, é por demais desgastante, sendo necessário muita persistência e paciência para falar com um sem-número de funcionários, durante longas horas. Alguns deles quase não nos respondem; outros, porém, falam-nos interminavelmente sobre os mais variados assuntos, mas especialmente sobre aquilo que julgam saber acerca do funcionamento interno da Organização. É-nos, contudo, totalmente impossível distinguir, por entre toda aquela verborreia, a verdade ou qualquer informação verdadeiramente útil; sendo que ela nos pode ser transmitida até pelo menos provável dos interlocutores – simplesmente não o sabemos. Por vezes, quando julgamos ter o processo bem encaminhado, perto da sua resolução, um erro ou confusão de última hora vem baralhar tudo novamente, voltando, se tivermos sorte, tudo ao início.
Aos funcionários estão interditos quaisquer contactos íntimos com cidadãos. É, também, impossível abandonar a Organização: não existem despedimentos, sob qualquer pretexto, mesmo perante declarada incompetência ou absoluto desleixo, o que conduz a uma prestação de serviços muitas vezes caótica; essa má vontade dos funcionários é também consequência do seu descontentamento em continuar ao serviço, que não podem abandonar – mesmo que alguém fugisse para a cidade ou para o deserto, abdicando do conforto proporcionado pela Organização, acabaria por ser implacavelmente perseguido por outros funcionários encarregados de lhe transmitir as ordens (a hierarquia, nunca reconhece que o funcionário abandonou o serviço, pois tal seria impossível, e continua a comportar-se normalmente, apenas tomando em consideração o facto do funcionário estar temporariamente ausente do edifício sede); este é livre de cumprir as ordens ou não, como em qualquer altura, mas estas não param de chegar, sendo-lhe lidas em voz alta.
Todos os funcionários descendem, portanto, de uma linhagem bem definida. No entanto, como é impossível controlar absolutamente todos os funcionários – sendo a sua liberdade inegável –, apesar de interditos, acontecem por vezes encontros de índole sexual entre funcionários, de ambos os sexos, e cidadãos. Estes contactos, não são, contudo, desconhecidos da Organização; talvez sejam mesmo determinados por esta. Os funcionários são, quando assim o desejam, extremamente sedutores, sendo impossível resistir-lhes. As suas descrições sobre o funcionamento da Organização são como o canto das sereias, sedutores como a tecnologia, como o poder que transpiram.
Os frutos destas uniões aparentemente fortuitas são mais tarde recolhidos pela própria Organização. Quando chega o momento certo – sendo este determinado pelas necessidades da Organização, quer no que respeita ao número de funcionários, quer ao perfil requerido –, um dos funcionários de ligação entrega, em mão, ao visado, uma mensagem da Organização, normalmente assinada por um funcionário superior, em que são reveladas as circunstâncias da sua conceção e a sua condição de funcionário. Não é possível rejeitar esta condição, da mesma forma que não é possível abandonar a Organização; não é uma proposta de adesão, mas apenas uma comunicação. Normalmente, não decorre mais do que quinze minutos até que a primeira ordem lhe seja comunicada. Poderá ser simplesmente um pedido para se apresentar no edifício sede, ou então, alguma pequena tarefa que exija pouco conhecimento. De qualquer forma, como se compreende, ao transformar alguém que, até determinado momento, eventualmente tardio, viveu como um cidadão comum, num funcionário, não se lhe pode exigir que consiga compreender a Organização, o seu funcionamento interno, e a natureza das tarefas a desempenhar, por isso é indiferente o seu grau de complexidade; não se espera, realmente, que ele a consiga realizar. Não podemos exigir destes novos funcionários o que não exigimos de nenhuns outros, mesmo aqueles de linhagem pura. Começam, invariavelmente, por exercer funções como funcionários de ligação pois conseguem comunicar perfeitamente com os cidadãos, característica que é cada vez mais rara na Organização. Caso sejam muito dedicados e curiosos, estudem todos os processos da Organização e apreendam a sua linguagem, serão, obrigatoriamente, promovidos.
A minha mãe era uma cidadã, meu pai um funcionário; segundo rumores, um funcionário superior, o que é ainda mais raro e invulgar. Recebi a semana passada a comunicação da minha condição de funcionário. Tenho 30 anos e sou solteiro. Caso não o fosse teria que abandonar a minha família para sempre.
Sou também um anarquista convicto. Quer isto dizer que abomino a Organização, que recuso o seu controle, o seu peso, que a combato desde que me lembro. Tudo isto me parece demasiado irónico, esquizofrénico. Sou funcionário e anarquista. Inicialmente, pensei que seria uma grande oportunidade para combater a Organização a partir do seu interior. Cedo compreendi que pouco se poderia fazer para atrapalhar os processos da Organização, que são extremamente complexos, contemplando sucessivos erros e confusões – por vezes, não são mais do que isso mesmo. Sabotá-los é, por vezes, apenas apressar a sua correta conclusão. Outros são mais fáceis de sabotar, são mais vulneráveis, mas a sua importância é nula. Dir-se-ia que muitos dos processos visam apenas camuflar as verdadeiras tarefas, tornando-as invisíveis na sua imensidão.
Percebi então que, se queria verdadeiramente destruir a Organização, libertar-me do seu jugo, do seu brutal peso, teria que penetrar mais profundamente no seu âmago, teria que a compreender, teria que me tornar um funcionário superior. Comecei então a estudar afincadamente a linguagem da Organização e os seus processos. Fui rapidamente notado e, consequentemente, promovido: sou agora funcionário de Nível I. Sinto que serei, em breve, novamente promovido. O meu conhecimento da Organização é cada vez mais profundo; estou cada vez mais embrenhado.
Sei, com toda certeza, que a Organização conhece a minha anterior atividade como anarquista. A Organização conhece tudo; embora cada um dos funcionários tenha apenas um conhecimento limitado.
Desconfio agora que aquilo que inicialmente me pareceu um erro da Organização, que poderia aproveitar a favor da causa anarquista, talvez seja um elaborado plano com vista à minha total absorção e eliminação.
A Organização é fascinante, o seu poder e complexidade lúbricos. A sua complexidade é fractal. Não tem centro, não tem topo. É infinita, é reconfortante. A sua solidão, o seu vazio, são reais, mas a sua aparência de grupo, a esperança no racional dos seus processos, que a todo o momento parecemos descobrir, é mais forte, é mais aconchegante.
Passo intermináveis horas à minha secretária, alumiado por um pequeno candeeiro, consultando documentos do imenso arquivo da Organização. Temos acesso a tudo, embora só consigamos compreender uma pequena fração. Sou lentamente amaciado e corroído pelos seus processos maviosos. Serei deglutido, serei mais um funcionário…
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